segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Air - Moon Safari (1998)

 

Os franceses tornam muito difícil gostarmos deles. Por um lado tiveram a Comuna de Paris, por outro têm a Frente Nacional; por um lado tiveram Zidane, por outro têm Benzema; por um lado têm a Costa Azul, por outro decidem vir para Portugal menosprezar quem não fala a porra da língua deles. Sim, isto é pessoal. Uma vez fui abordado no Chiado por uma francesa velha que queria indicações. Quando lhe respondi que falava mal francês e preferia o inglês, respondeu MAIS JE NE PARLE PAS ANGLAIS com a maior sobranceira do mundo, virou costas e foi embora. Espero que tenha acabado no fundo de uma qualquer falésia.

O ponto é este: todas as coisas incríveis que a cultura francesa nos dá levam imediatamente com um asterisco por causa do seu chauvinismo e altivez, e se acham que estou a generalizar todo um povo por causa da atitude de uns quantos, caguei, são franceses. Gainsbourg leva um asterisco porque, apesar de ser um génio, era também um idiota misógino (a Whitney Houston e a Catherine Ringer que o digam). Françoise Hardy leva um asterisco, porque cantou 'Le Premier Bonheur Du Jour' e 'Mon Amie La Rose' e 'Tous Les Garçons Et Les Filles' e 'Comment Te Dire Adieu', mas é uma beta liberal a roçar o facho. Os Daft Punk levam um asterisco, porque "Discovery" é um dos melhores álbuns da história pop, mas depois fizeram a 'Get Lucky'. Safa-se quem? Bem, safam-se os Air, que sempre pareceram uma dupla minimamente chill, meio que à semelhança da música que fazem.

Editado em 1998, "Moon Safari" ainda se apresenta, 25 anos depois, como a sua maior obra-prima. Emos dirão que isso não é verdade, que o "The Virgin Suicides" é melhor. Outros mencionarão o "Talkie Walkie" e a 'Alpha Beta Gaga' ou a 'Alone In Kyoto' porque viram o "Lost In Translation" e acharam esse filme mais que uma merda do caralho (estou disposto a lutar num ringue por isto: o 'Lost In Translation' é horrível e vocês só gostam por causa da banda-sonora). Ninguém falará do "Love 2" (que, diga-se, é bastante decente). A velha guarda vai rir-se ao lembrar-se que num blogue antigo "10 000 Hz Legend" foi descrito com um simples e lendário pá, é naquela. Pelo menos acho que foi esse. Se estiver enganado avisem.

Onde ia? Sim, "Moon Safari" é a obra-prima dos Air porque é o disco onde os franceses nos conseguem pôr a sonhar em tons retro, se quisermos ser minimamente poéticos. Há toda uma geração que viu o homem a pisar na Lua em directo e por conseguinte deixou de ter no espaço sideral uma novidade, mas desse momento impagável os seus filhos só tem o áudio, os vídeos e as fotografias. É como se nunca tivesse existido, porque a experiência só nos é contada em história, e a história é manipulada por E L E S

(melhor parar por aqui antes que achem que sou um chalupa das conspirações)

«Queríamos que "Moon Safari" fosse uma aventura, que levasse o 'som francês' a um lado diferente», explica Jean-Benoît Dunckel a Martin James em "French Connections", livro sobre a história e o impacto da música fait en France nos anos 90. Essa é a década em que os franceses têm de confrontar o seu racismo e as discrepâncias sociais via "La Haine", mas também é a década onde brancos de classe média-alta transformam o house e a disco em algo (ainda) mais refrescante. Ao contrário dos conterrâneos Daft Punk, os Air não se viraram para esses dois géneros, e sim para Gainsbourg, para os Pink Floyd, para Jean-Jacques Perrey, para Joe Meek: para uma velha ideia de futurismo. «A lua é o símbolo perfeito para a nossa música. Representa algo que tem lá estado sempre, e no futuro toda a gente quererá ir à lua». Em 1998 como em 1969, em 1969 como em 2023.

E, no entanto, os Air recusam a assumir esse lado retro, tal como muitos outros artistas recusam assumir os seus. «Há quem nos chame retro, há quem nos chame kitsch, acho apenas que não entendem», continua Dunckel. Entendendo ou não, "Moon Safari" foi um sucesso, ainda para mais quando o colaram, no que ao género diz respeito, a outras obras da eletrónica menos dançável e mais emotiva, como "Portishead" ou "Mezzanine". O trip-hop - que é em Portugal o que David Hasselhoff é na Alemanha - a tomar conta do planeta. "Moon Safari" vendeu mais de dois milhões de cópias por todo o mundo, serviu para ajudar a combater ressacas de noitadas anteriores, e deixou toda a gente em agências de publicidade a esfregar as mãos de contentes quando percebeu que 'Sexy Boy', 'All I Need' ou 'Kelly Watch The Stars' - uma das melhores sequências de sempre - ficavam mesmo, mesmo bem em anúncios de carros ou perfumes.

O que poucos sabem é que "Moon Safari" é uma obra-prima não porque soa bem - e soa - ou porque tem escelentes canções - e tem - mas sim porque é o álbum mais rock n' roll dos Air, na medida em que o rock n' roll é um espírito: «Nós gostamos de nos embebedar, gostamos de sexo, como todas as pessoas», diz Nicolas Godin em "French Connections". «O "Moon Safari" é um disco para pinar. A 'Sexy Boy' é uma canção muito porca. Gostamos de pensar que a nossa música é uma banda-sonora para o sexo», tal como muitos outros pensaram nas suas guitarras para o sexo, tal como todos os franceses pensam no sexo (isto é uma graçola mas é tão verdade, caraças). 

Tal como afirma Martin James, a diferença entre os Air e os Daft Punk é que os primeiros têm orgulho em serem franceses, mesmo que esse orgulho - e isto vai contra o que foi escrito mais acima - não parta de um nacionalismo e uma arrogância bacocas, e sim de um gosto genuíno pelas partes boas da cultura que os rodeia. Mesmo ali na capa, lê-se: french band, logo ao lado de Air. Mais ninguém faria isto, nem mesmo as velhinhas que não falam inglês. E, o que é mais curioso: os próprios franceses não os veem como franceses. «Cantávamos em inglês, por isso pensavam em nós como uma coisa mais britânica», contou Dunckel à "Loud And Quiet" em 2016. A identidade dos Air pode, assim, resumir-se a um pastiche daquilo que os estrangeiros pensam sobre França, e poderá muito bem ser essa a chave do seu sucesso: se todos os franceses fossem assim tão auto-depreciativos e capazes de troçar de si próprios, seríamos muito mais capazes de os adorar. Até, quem sabe, estaríamos dispostos a (re)aprender o francês só para comunicar com eles. Se calhar está na hora de reactivar o Duolingo, apenas e só por respeito a este álbum. Vive la Lune.

domingo, 8 de janeiro de 2023

Albrecht/d. - Endless Music (1974)

 


Dietrich Albrecht poderia ter sido só mais um bancário chato se não tivesse abandonado esse primeiro emprego, dedicando-se às artes. No plural, já que a sua obra e os seus interesses abarcam vários campos artísticos. Criou contactos com os artistas do Fluxus, esteve envolvido em mail art, mudou de nome para Albrecht/d. numa espécie de homenagem a Albrecht Dürer e, aquilo que - pessoalmente falando - mais importa, lançou uns quantos discos, colaborando com gente como Joseph Beuys (perguntem aos vossos amigos de belas-artes) e os Throbbing Gristle (perguntem aos vossos amigos drogados).

"Endless Music" talvez seja o mais conhecido desses trabalhos musicais, ainda que "conhecido" seja uma palavra muito forte para algo tão de nicho, e que ao longo da sua carreira conheceu várias encarnações e edições. Mas que não se pense em "Endless Music" como "música infinita", conforme o próprio explicou em 1988: essa é uma expressão que vai mais de encontro a um religioso nirvana do que outra coisa, inspirado pelo seu apreço pela música de Bali (não se podia ser vanguardista nos anos 60/70/80 sem se gostar de "música de Bali", que é o equivalente pretensioso do mui palonço "não podes gostar de hip-hop tuga sem gostares de Sam The Kid").

A música é sobretudo repetitiva, algo que Albrecht, antes de falecer, explicou fazer «parte da base da improvisação» (isto se o Google Translate estiver correcto). Dividido em seis peças, "Endless Music", na sua versão de 1974, soa a um encontro fortuito entre um homem das obras e um monge tibetano, o ritmo hipnótico a ceder terreno a solos de uma corda só e a ocasionais delírios vocais (feminino e operático e feminino e gritaria). E se essa descrição parecer absolutamente horrenda, é só falha do seu intérprete: "Endless Music" é na verdade bastante interessante e uma inclusão digna na lista de discos de todos os que gostam de música estranha.


sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Iggy Pop - Every Loser (2023)

 


Iggy Pop sempre foi um falhado. Foi-o quando morava com a família num trailer park - falhado porque pobre. Foi-o quando fez parte da equipa de debate do liceu que frequentava - falhado porque totó. Foi-o quando descobriu o rock n' roll - música para falhados e refuseniks. Foi-o quando as drogas passaram a fazer parte indelével da sua vida - falhado porque janado. E é falhado agora porque está velho e não mais irá fazer crowdsurf na vida - bom, isso está por descobrir. Porque Iggy Pop é um falhado, mas é o nosso falhado, e normalmente quando diz uma coisa não o devemos levar muito a sério. Devemos, isso sim, partir com ele rumo à qualquer coisa que ele quer que descubramos, como um miúdo que diz a outro que viu um gato morto na berma da estrada.

Claro que, ao longo dos últimos quase cinquenta anos, praí desde o lançamento de "The Idiot" / "Lust For Life" / "Kill City", essa qualquer coisa não tem sido minimamente fascinante, salvo colaborações muito honrosas ou projetos que retiram os fãs de Iggy Pop (mas não o próprio, importante ressalvar) da sua área de conforto, como "Leaves Of Grass", que o juntou a Alva Noto e Tarwater para uma homenagem ao grande Walt Whitman. O fascínio de Iggy Pop reside, desde 1977, nas suas performances ao vivo: o tronco nu, a gritaria, a porrada. A ideia de que nós, falhados do mundo, somos um exército poderoso quando nos unimos.

"Every Loser" não é fascinante, à semelhança de praticamente todos os álbuns de Iggy Pop lançados após essa trilogia. Mas parece ter sido gravado de forma a resultar ao vivo, como se nota em 'All The Way Down', o som cheio a pedir umas colunas brutais - Iggy sabe que é ao vivo que Iggy resulta e é ao vivo que os fãs o querem. Pelo meio, vários atos falhados: 'Strung Out Johnny', uma drogaria que podia ter sido escrita em 1995, 'New Atlantis', radiofónica e chata, e 'Comments', uma tentativa algo patética de tentar soar à fase Bowie. 'Frenzy' ainda anima, assim como 'Modern Day Ripoff', e a crítica muito pouco escondida a escumalhas modernas tipo Machine Gun Kelly, em 'Neo Punk', faz sorrir. 

Para alguém que disse que este álbum tinha como objectivo encher o ouvinte de porrada, "Every Loser" nem sequer faz cócegas (e está tudo dito quando é um interlúdio, 'The News For Andy', poesia misturada com swing nocturno, a faixa mais interessante do disco). Porém, atente-se nos versos finais de 'The Regency', uma espécie de autobiografia com a batida da 'Be My Baby': I battled with the regency / I fought them to a draw / While I'm alive, uncompromised / I'm stepping out the door. Será esta a despedida do Rei dos Falhados? Espero, apesar de tudo, que não - não faria nada bem ao coração uma despedida tão precoce (sim, precoce) do único músico que, quando morrer, me fará chorar.

Damo Suzuki (1950-2024)

  Ain't got no time for western medicine / I am Damo Suzuki , cantava Mark E. Smith na bonita homenagem que os seus The Fall fizeram ao...