quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Airway - Live At LACE (1978)

 

Não sei o que é que me fascina no barulho - talvez o facto de viver com ele constantemente, todas as horas e dias e semanas lidando com os pneus dos carros que passam pela Nacional 10, com o ratatatata das obras em ruas e prédios e parques, com o drone semi-longínquo dos aviões que passam (menos longínquo quando se lembram de aterrar para reparações), com o mmmmmm constante do portátil, com os gritos e gritinhos dos miúdos a jogar à bola na praceta - talvez o facto de estar tão dessensibilizado que o barulho, formado por uns ou por outros sons, me é familiar e tem o mesmo efeito calmante de um abraço amigo. E então, em alturas mais stressantes, amplifico-o, sobretudo na sua forma japonesa, e deixo que mate um bocadinho mais o ego e lave terapeuticamente os meus pecados.

Porque é mais punk, porque é exótico, sei lá: hoje fala-se de barulho (ou noise, para dar aquele elã) e é impossível não mencionar Merzbow, Hanatarash, Masonna e todos os demais loucos que deram ao país do Sol Nascente uma aura ainda mais bizarra que a que tinham já, com todos aqueles robôs gigantes e máquinas de venda automática e katanas e já as CocoRosie diziam everybody wants to go to Japan. Pensa-se é menos no que terá influenciado esta gente toda. A resposta: a Los Angeles Free Music Society, colectivo formado nos anos 70 por gente que achava o rock n' roll mainstream aborrecido, preferindo sobretudo o ethos do género: posicionar-se nas margens e fazer barulho.

Os Airway foram apenas um dos seus braços, projeto de Joe Potts com a ajuda de várias figuras dentro do colectivo, um braço que acabaria por formar o corpo inteiro de bandas como os Hijokaidan (todas estas referências é para irem procurar no YouTube, amigões. Sejam livres). Ao longo de uma vida que não o chegou a ser - porque este tipo de projectos é para fazer uma vez e partir para outra -, os Airway tiveram apenas uma rodela de vinil com o seu nome, registo de uma performance no Los Angeles Contemporary Exhibitions, espaço dedicado às artes visuais. Não havendo vídeo acoplado ao disco, não dá para perceber se a ideia de Potts de um assalto subliminar aos sentidos (15 anos antes da "Zoo TV" dos U2 tentar um assalto total) foi bem concretizada, nem há muita gente a quem o possamos perguntar. Mas podemos chamar-lhe barulho, porque é assim que Rick Potts, o seu irmão, descreve a sonoridade dos demais projetos da Los Angeles Free Music Society.

Que tipo de barulho? Do bom, claro, e que arranca com uma bateria primitiva, antes de dar a vez - naquilo que é a qualidade menos caótica do disco, já que indica ordem - ao saxofone free jazz e à guitarra eléctrica, num ritmo constante e que acelera ali por volta dos oito minutos. Até que no lado B surge a voz, alienígena e incompreensível (compararam-na por aí ao que o Brian Chippendale faz nos Lightning Bolt e é uma comparação que faz algum sentido), para tudo terminar 28 minutos depois com o tribalismo catártico que se espera de uma sessão de ruído. Claro que não é tão abrasivo como algumas das coisas eletrónicas que veio a influenciar, e que mereceriam um 9 ou um 10 numa improvisada escala de Richter para o barulho, mas é fixe para irritar os vizinhos.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Pekka Airaksinen - Buddhas Of Golden Light (1984)

 


O que acontece quando um homem abandona os ácidos e a pornografia e descobre uma razão para a sua existência no budismo? Acontece Pekka Airaksinen, músico do qual se diz ter sido uma das figuras mais importantes do underground finlandês dos anos 70, depois de ter fundado os Sperm, projeto de vanguarda que aliava a música às artes performáticas. O fim desse grupo foi, para si, também o fim do desejo. Começou a colecionar arte tibetana, abriu um museu, e esteve vários anos sem lançar música nova, até chegar a "Buddhas Of Golden Light", o seu segundo álbum a solo, depois da estreia com "One Point Music" (1972).

"Buddhas Of Golden Light" foi o primeiro tomo de um projeto pessoal de Airaksinen, que queria lançar um disco por cada um dos avatares budistas (morreu em 2019, algo longe do número 1000 mencionado nos textos sagrados, mas com pouco mais de 100 edições no currículo). Para trás pode ter ficado a loucura dos Sperm, mas não a excentricidade. Quase 40 anos depois, "Buddhas Of Golden Light" é um daqueles álbuns impossíveis de descrever, sequer mesmo de comparar, e boa parte dos motivos para tal está na forma como foi construído, com recurso a uma TR-808, os ritmos da máquina a aliarem-se ao free jazz

«Fazer arte deve ter que ver com a loucura», disse à "The Wire" em 2018, e a sua afirmação faz cada vez mais sentido quando nos deparamos com os pulsares cósmicos de 'Sukirti', como se a banda-sonora de "Ren & Stimpy" tivesse mais que ver com a javardice decadente (elogio) dos desenhos animados que com o bebop do tema de abertura. Mas talvez não seja loucura, e sim matemática, que em Lautreámont era semelhante ao divino. «Inventei um sistema onde converti estes nomes [dos avatares] em informação matemática, e posteriormente em equivalentes musicais, que utilizei nas composições», explicou. Ou seja, o que escutamos em "Buddhas Of Golden Light" não é o caos, mas um nome, uma identidade, e que o é sagrada.

Claro que só quem tem fé pensará nisso dessa forma. Os que a não têm, ou que nas questões do eterno se posicionam no campo do seu inverso, escutarão 'Suvarnasatarasmibhasagarbha' e, depois de três aftas, quatro tosses e uma dose considerável de baba a tentar pronunciá-la, pensarão nele como um tema onde uma espécie de theremin (na verdade, um sintetizador) solene abre caminho para o funk de 'Ratnasikhin' - que mais se assemelha a uma criança a brincar com os presets de um teclado da Casio, até entrar um saxofone que nos recorda de que este é um álbum deste planeta, apesar de tudo. A fechar, os teclados proeminentes de 'Kandrasuryapradipa' voltam a trazer ao de cima o espírito de Sun Ra, Buda também ele, à sua maneira. Meditemos.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Manuel Göttsching - E2-E4 (1984)

 


A quinze minutos do final do concerto, o plano era simples: iria levantar-me da cadeira, resolver a enorme vontade de mijar que tinha, e voltar à sala. Porém, o zeloso funcionário do TAGV arruinou-mo à partida, indicando-me que não poderia regressar ao meu lugar, nem mesmo estando em trabalho. Dado que quem bebe muita cerveja raramente consegue aguentar muito tempo, tive que me resignar e perder o que faltava de “E2-E4”, a obra-prima de Manuel Göttsching, que o próprio apresentou nessa noite coimbrã. E conto isto não por ainda guardar rancor em relação ao funcionário em questão (porque o guardo, porque quem não sente empatia pelas necessidades fisiológicas alheias merece todo o mau karma que lhe caia em cima), mas porque a morte de Göttsching me fez perceber que, agora, já não terei qualquer oportunidade de o aplaudir.

Não o fiz durante o espetáculo porque “E2-E4” não é uma obra que se deva cortar com outro tipo de sons. Também não é uma obra fácil de explicar a quem nunca a escutou, para além do óbvio. Peça única de quase uma hora onde é sobretudo a repetição o que nos atrai, tanto rítmica como melódica, pelo menos até se chegar a 'Ansatz' e entrar aquela deliciosa guitarra mediterrânea – a mesma que terá inspirado 'Sueño Latino' a transportar a mecânica alemã para as praias da costa sul europeia. Sol e mojito na mão a acompanhar o balanço. Trance antes de lhe darem um nome. Bíblia para o techno minimal. Roque psicadélico puro (fiquei tão orgulhoso com esta piada de xadrez, na reportagem desse concerto em Coimbra, que sinto que a tenho que replicar).

Quando lançou “E2-E4”, Manuel Göttsching era já uma figura conhecida do rock alemão, pelo seu trabalho nos Ash Ra Tempel, que mais tarde se tornariam nos Ashra, moniker de um projeto a solo que contaria com alguns convidados. Nascido em Berlim, em 1952, o seu percurso foi semelhante ao de muitos dos seus comparsas: primeiro a música clássica, depois o rock n' roll e o som da Motown, e finalmente as composições eletrónicas e improvisadas que à altura faziam o underground do underground. O abandono (não total) da guitarra elétrica deu-se precisamente nos anos 80, quando os sintetizadores e os sequenciadores permitiram a Göttsching encarnar, de forma completamente distinta, o ethos do krautrock – repetição, repetição, repetição, até que o ego se dissolva na música.

Gravado em 1981, “E2-E4” acabaria por ser editado apenas em 1984, depois de o músico o ter oferecido à Virgin – “sem grande vontade”, como é escrito em “Future Days”, de David Stubbs – e acabando por escolher a Inteam, do amigo Klaus Schulze, figura que nos Tangerine Dream se apaixonou por sintetizadores antes de toda a gente. O impacto nas pistas de dança foi imediato, com o disco a encontrar um público fiel no lendário Paradise Garage, em Nova Iorque. Se os Kraftwerk foram os pais do techno, com “E2-E4” Göttsching tornou-se, como escreveu o Guardian, no seu padrinho. «Não conseguia imaginar as pessoas a dançar ao som dele», admitiu então.

Nada mau para uma peça que «não fazia questão de gravar, em formato álbum», e que nasceu de uma sessão de improviso em estúdio como tantas outras. «Não alterei nada. Não fiz overdubs. Não editei. Deixei-a como estava. Fiquei espantado quando a terminei e pensei: 'O que foi isto?'», contou numa conferência da Red Bull Music Academy. É algo que também costuma passar pela cabeça de quem o ouve, melhor ainda se forem virgens em relação à obra: 'o que foi isto?'. É capaz de ser felicidade, irmão. Agora ouve-o outra vez. Mas esvazia a bexiga antes.


domingo, 11 de dezembro de 2022

Agitation Free - Malesch (1972)

 


A culpa é do maio de 1968. Depois de os estudantes terem erguido barricadas, o Goethe-Institut decidiu pegar na agitação social e política da época e na então emergente arte de vanguarda, enfiando tudo dentro de uma caixa, lacinho em cima, para as levar pelo mundo fora como forma de vender uma Alemanha que, àquela altura, era ainda apenas Ocidental. Foi assim que os Agitation Free, formados em 1967 sob o nome Agitation (que tiveram de alterar porque alguém havia lá chegado primeiro), puderam viajar pelo Líbano, Egipto, Grécia e Chipre, munidos de instrumentos e com a cabeça a andar à roda por causa das drogas ou do rock psicadélico que escutavam. Na maior parte das vezes, com a cabeça a andar à roda por causa das duas coisas ao mesmo tempo.

Dessas viagens com o alto patrocínio do governo alemão os Agitation Free trouxeram "Malesch", o seu disco de estreia, inserido nessa categoria que os ingleses - sempre predispostos a uma boa boca xenófoba - apelidaram de krautrock, um epíteto que os demais melómanos adoptaram, até porque os alemães, depois de alguma rejeição inicial, deixaram de se preocupar assim tanto com a coisa (e não é como se tivessem moral para criticar, não é?). Porém, se formos fazer uma lista de álbuns seminais do primeiro período krautrock, o mais certo é que "Malesch" não se encontre por lá. A culpa é de Julian Cope, que não o incluiu no seu igualmente seminal "Krautrocksampler". Mas também é culpa dos próprios Agitation Free: bons, sim, mas não revolucionários, como o foram comparsas como os Can ou os Neu!.

Não que os seus membros não tenham feito grandes coisas ao longo das suas carreiras. O guitarrista Lutz Ulbrich, por exemplo, "Lüül" para os amigos, acabou a trabalhar com os Ashra (do genial Manuel Göttsching) e com Nico (não menos genial), e Christopher Franke, o baterista original do grupo, que nem sequer participou das sessões de "Malesch", esteve largos anos nos Tangerine Dream. Mesmo à altura os Agitation Free não eram tão desconhecidos quanto isso, no sentido lato da palavra desconhecido: eram a banda residente da discoteca Zodiac, a primeira em Berlim Ocidental dedicada ao underground, e acabaram a receber uma avença de um conservatório local, o que lhes permitiu acesso a um estúdio (que a mãe de Franke fosse professora de violino também ajudou). Conforme contam os próprios no seu website oficial, uma das suas primeiras performances atraiu cerca de 1500 pessoas, terminando num maravilhoso motim - o género de coisas que os estudantes faziam quando se sentiam insultados, e quando não queriam pensar na pergunta onde é que o teu pai estava em 1945?.

A música, sobretudo improvisada ao início, ganhou com as influências que vinham do estrangeiro, os Pink Floyd à cabeça. Outrora tão free como o nome do grupo, ganhou estrutura e coesão, mas não tanta que a tornasse cafona. Olhe-se para "Malesch", onde esses momentos de improvisação são beneficiados pela repetição (a motorika de 'Ala Tul' ou o tema-título), por riffs pesados cortesia dos Iron Butterfly (no final do pulsar cósmico de 'Sahara City'), pelos samples que acrescentam aqui e ali (como no início de 'You Play For Us Today', onde a voz que se escuta é a do piloto que os transportou para o Chipre). Aliás, poder-se-á dizer que a filosofia dos Agitation Free está contida no nome do álbum: "Malesch", em árabe (معليش), significa qualquer coisa como 'tá tudo, tranquilo. Não é preciso chatearmo-nos por isto não ser tão improvisado ou tão estruturado, o que sair daqui será bom.

Por outro lado, talvez seja essa indiferença drogada o que faz com que "Malesch" não tenha tido o mesmo impacto que os discos de alguns dos seus pares. Não que isso importe muito: meio século depois, "Malesch" ainda aqui está à nossa disposição, a narrar a viagem que um grupo de heads alemães fez pelo então tão misterioso Oriente Mediterrânico, com um enorme bónus no regresso: já com o disco gravado (que acabaria por sair em dezembro de 1972), os Agitation Free foram escolhidos para atuar numa série de eventos ligados aos Jogos Olímpicos de Munique, a sua última grande hipótese de atingir a fama. O álcool e as drogas acabariam a levar o grupo para péssimos caminhos, fechando-se o ciclo com mais dois álbuns, "2nd" (em 1973) e "Last" (registo ao vivo de 1974, lançado em 1976). Desde então, já se reuniram por diversas vezes, a última das quais em 2013. Se isso de traduzirá em mais incursões futuras pelo mundo, ninguém sabe. Mas, olhem, malesch.

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