sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Neutral Milk Hotel - In The Aeroplane Over The Sea (1998)

 

Quando fui a Amesterdão, passei pela casa, hoje museu, onde Anne Frank viveu uma das histórias mais populares do Holocausto. "Popular", culpa de um "Diário" onde redigiu os seus pensamentos adolescentes enquanto se escondia da Gestapo, e que é hoje em dia lido por milhões atrás de milhões de pessoas, quer em contexto escolar, quer por curiosidade pessoal. Eu me confesso: nunca li o "Diário" e, quando passei pela casa, com um monte de gente na fila para entrar (não o fiz porque os bilhetes só podiam ser comprados online e eu não estive para me chatear), o meu primeiro pensamento não foi Anne Frank, e sim 'Holland, 1945', uma das canções que Jeff Mangum lhe dedicou, tão comovido ficou com a história da jovem judia. 

Isto faz de mim uma pessoa horrível, como é óbvio: quem é que, no seu perfeito juízo, é confrontado com um dos maiores horrores que a humanidade já produziu e só consegue levar a mente para o campo da música pop?

Não sou, no entanto, a única pessoa horrível neste mundo. E neste contexto. É difícil imaginar que a casa de Anne Frank não seja, também, motivo de peregrinação para os fãs de "In The Aeroplane Over The Sea", tamanho é o impacto desse disco numa franja da população que prefere que a sua música seja menos sobre abanar o cu (e não há absolutamente nenhum mal em abanar o cu, atenção) e mais sobre letras a roçar o surreal e a infância, menos sobre ser uma estrela teatral e mais sobre autenticidade (seja lá isso o que for), menos sobre glitter e mais sobre camisas de flanela e punk rock, menos sobre quem aspira a tomar de assalto uma cidade e mais sobre gente rude do campo que até leu os mesmos livros que o pessoal leu ou lerá na universidade. Um impacto que passou de geração em geração ou, melhor dizendo, um impacto que só existiu na geração seguinte àquela que viu o disco ser lançado. A culpa é da qualidade memética da capa (uma mulher com cabeça de tambor? uma senhora cabeça-de-batata saída de um "Toy Story" hipster?), ou do enorme gozo que dá gritar I LOVE YOU, JESUS CHRIST, mesmo que na maior parte das vezes nos estejamos nas tintas para Cristo. 

(A culpa também é do 4chan, provavelmente uma das poucas boas culpas que o 4chan tem no cartório.)

Não que o disco tenha sido imediatamente esquecido, quando foi originalmente lançado, em 1998. Até porque os próprios Neutral Milk Hotel, que para todos os efeitos são um veículo exclusivo de Mangum, com a ajuda dos seus amigos da Elephant 6, já tinham lançado um álbum que havia caído no goto de boa gente, dois anos antes: "On Avery Island". A Merge esperava vender o mesmo número de cópias de "In The Aeroplane Over The Sea" que esse disco de estreia, disponibilizando 5500 cópias em CD e 1600 em vinil. O que a Merge não esperava é que este fosse um daqueles álbuns em que o passa-palavra se tornaria quase tão importante quanto o álbum em si: quem viu os Neutral Milk Hotel ao vivo, por esta altura, apressava-se a contar o que viu aos amigos mais cultos, e quando esses amigos o viam apressavam-se a contar a outros amigos, e por aí fora.

«É extremamente difícil escrever sobre um álbum como 'In The Aeroplane Over The Sea'», aponta Adam Clair em "Endless Endless", livro indispensável para todos aqueles que queiram entender melhor como funcionava a Elephant 6, colectivo que - não só com os Neutral Milk Hotel mas também com os Apples In Stereo ou os Olivia Tremor Control - alterou o panorama indie norte-americano de finais dos anos 90. E é difícil escrever sobre ele precisamente porque olhamos para a premissa inicial (o fascínio de Jeff Mangum com a pessoa e a vida de Anne Frank) e imediatamente pensamos: mas este gajo bate bem? Construir uma máquina do tempo para salvar a vida de Anne Frank? Semen stains the mountaintops? E essa cena de Jesus Cristo é mesmo crença?

(No mesmo livro, Clair aponta que essa verso em particular pode ser menos sobre o filho de Deus e mais sobre aquela interjeição particular que todos nós, até ateus, já dissemos em algum ponto das nossas vidas, fruto de uma educação e de vivermos numa sociedade minimamente católica. O que lhe retira alguma piada, mas que é ainda assim interessante).

Criado no seio de uma família religiosa mas não fanática, Mangum descreveu a sua infância como uma mistura entre «marijuana, Jesus Cristo e os Minutemen», o que valha a verdade é uma descrição perfeita de "In The Aeroplane Over The Sea". A sua qualidade drogada e psicadélica de baixa fidelidade, aliada à energia do punk, complementa letras carregadas de uma poética espiritual mas, sobretudo, inocente - nesse sentido infantilizado da inocência. Há poucas coisas que aqueçam mais o coração que isto, cantado de sorriso nos lábios:

And one day we will die
And our ashes will fly
From the aeroplane over the sea

Mangum andou a ler o "Diário" pouco antes de começar a compor essas canções, e a coisa abalou-o tanto que sentiu a necessidade de o botar cá para fora, em jorro. Segundo Robert Schneider, que lidera os Apples In Stereo e tocou em discos dos Neutral Milk Hotel, Mangum nem sequer era um grande leitor. «Esse é um dos poucos livros que ele leu, nessa altura», conta em "In The Aeroplane Over The Sea", o livro sobre o disco, da colecção 33 1/3. À "Puncture", Mangum explicou que as canções surgiram «de forma espontânea». «Levo algum tempo para perceber o que está a acontecer, liricamente falando; que tipo de história estou a contar [...] Quando estava a ler o livro, [Anne Frank] estava completamente viva para mim. Sabia o que iria acontecer. Mas é essa a cena: amas as pessoas porque conheces a história delas».

Estava errado. O público que ama Jeff Mangum ama-o mesmo não sabendo grande coisa acerca da sua história, ou precisamente por não o saber - se há algo de que o público gosta à séria é de um bom mistério ou de uma personagem que se apresenta ao mundo como não estando nem dentro nem fora da caixa, quer essa personagem tenha o nome Syd Barrett, Brian Wilson ou Burial. Quando alguém cria a sua arte sem se importar, nós tendemos a prestar atenção. «["In The Aeroplane Over The Sea"] foi criado para ser um álbum clássico, diz Schneider em "Endless Endless". "Putos no seu auge, sem dinheiro, a abrir os seus corações, sem interesses financeiros numa obra de arte pura é o cenário ideal. Sempre que alguém o faz, torna-se um clássico».

Tão clássico que Jeff Mangum, como Cobain anos antes, sentiu a necessidade de o rejeitar. No final de 1998, os Neutral Milk Hotel eram a banda indie por excelência; poucos meses depois, estavam desaparecidos em combate. «É possível que [Mangum] tenha sido vítima do seu próprio sucesso», afirma Clair. «As expetativas para o seu trabalho cresceram, e ele desenvolveu uma reputação de génio incompreensível. Quebrar essa mística poderia destruir algo que bateu em tantas e tantas pessoas». O que significou que a geração seguinte, que descobriu "In The Aeroplane Over The Sea" praticamente dez anos depois de ter sido lançado, só teve a oportunidade de constatar se o mito era real quando Mangum, primeiro, e com os Neutral Milk Hotel, depois, tocaram num par de Primaveras.

Confere: é extremamente difícil escrever sobre este álbum sem mencionar as partes óbvias, que é tudo aquilo que tentei colocar em cima. Não começou revoluções, começou religiões: venera-se "In The Aeroplane Over The Sea" pela música e pelas letras e pelas personagens Mangum/Anne e essa é uma veneração só nossa, um amor só nosso, que partilhamos com quem venha de boa vontade. Quem não o faz, tem que ser imediatamente rotulado como pagão, que é o que o Colbert devia ter feito aqui. Voltei a ouvi-o hoje e a minha nova parte favorita - que muda consoante as audições - é mesmo o final de 'Two-Headed Boy Pt. Two', com o som de Mangum a erguer-se e a sair do estúdio, como se tudo o que acontecera antes não fosse mais que uma sessão meio xamânica, uma espécie de festa comunitária em honra de uma figura mitológica que, só por acaso, morreu durante a II Grande Guerra. Daqui a outros 25 anos, continuaremos a lembrarmo-nos dele não pelas mudanças que provocou na sociedade, mas pelas mudanças que provocou em nós próprios - e se este linguajar soa meio hippie, que se foda, porque o disco também é meio hippie.

I
love
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Jesus
Christ

Damo Suzuki (1950-2024)

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