domingo, 11 de fevereiro de 2024

Damo Suzuki (1950-2024)

 


Ain't got no time for western medicine / I am Damo Suzuki, cantava Mark E. Smith na bonita homenagem que os seus The Fall fizeram ao emblemático vocalista dos Can, uma das maiores influências do grupo de Manchester. O ritmo é poderoso, os versos são, mais que cantados ou gritados, declamados numa voz anasalada e desafiante. Anos mais tarde, o baixista Steve Henley revelou ter-se encontrado com Suzuki, numa discoteca na Alemanha, e o simpático japonês ter-lhe-á respondido, com um sorriso: I am Damo Suzuki.

Era efetivamente Damo Suzuki, o homem que os restantes Can foram buscar para substituir o seu vocalista original, o norte-americano Malcolm Mooney. E era efetivamente alguém sem tempo para “a medicina ocidental”, após ter abraçado a fé em 1973, tornando-se Testemunha de Jeová. “A Alemanha está a passar por uma fase horrível: temos demasiados vacinados”, contou ao “i”, em 2021, em plena pandemia da Covid-19 (para além de negacionista da Covid, Suzuki era-o também da Sida). Ao longo da sua vida, teve que lidar, por duas ocasiões, com um cancro no cólon, a mesma doença que tinha vitimado o seu pai: sobreviveu a ambas. “Sou um otimista. Se tiverem pensamentos positivos, tudo correrá bem”, afirmou ao “The Guardian” em 2022.

Não foram para já avançadas as causas da sua morte. Porém, acaba por não interessar como Damo Suzuki morreu. Importa, muito mais, lembrar como ele viveu: como um espírito livre, tanto na sua forma de estar no mundo como na sua forma de estar na música. Nos Can, com quem gravou a tríade “Tago Mago” (1971), “Ege Bamyası” (1972) e “Future Days” (1973), os álbuns mais celebrados do grupo alemão e três dos melhores da história do rock, tornou-se conhecido pela sua forma de (não) cantar: a linguagem inglesa, muitas vezes macarrónica, utilizada como instrumento, os versos das canções ali presentes como puro automatismo (Sprechgesang, chamam-lhe os alemães). Nos Can, e mesmo nos seus trabalhos posteriores, o que importava não era ter algo a dizer, mas sim dizer algo.

Essa forma de criar tem, podemos dizê-lo, origem no período revolucionário da época, em que o maio de 68 partiu de Paris para incendiar o mundo, mas também nas origens do próprio Damo Suzuki, nascido no Japão do pós-guerra. Cinco anos após assinarem a sua rendição, na sequência das bombas atómicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, os japoneses foram obrigados a reinventar-se como nação – política, tecnológica, e culturalmente. “Tinham a capacidade, e o desejo, de pegar naquilo que os atraíam mais na música ocidental, e a motivação para o cruzar com as formas musicais japonesas que consideravam adequadas”, escreve Julian Cope em “Japrocksampler”. “Combine-se isso com o amor dos japoneses por expressões em japanglish [gíria utilizada para descrever o uso indevido ou a corrupção da língua inglesa por falantes nativos de línguas asiáticas], e o resultado é algo de loucos; Damo Suzuki fê-lo e inspirou uma geração de músicos punk e pós-punk, eu incluído”.

Cope, a voz dos Teardrop Explodes, sabe bem do que fala. Mas nem precisava de ter sido ele a dizê-lo; podia tê-lo dito Johnny Rotten, um dos poucos punks que não tinha vergonha de admitir o seu amor pelo rock progressivo, disse-o, e cantou-o, o já supracitado Mark E. Smith. E tudo poderia ter sido diferente se não fosse pela vontade de Suzuki de sair da sua ilha e partir pelo mundo, assim como tudo poderia ter sido diferente se os Can não se tivessem cruzado com o japonês, em Munique, antes de um espetáculo.

Nascido na cidade de Kobe, a sétima maior do Japão, em 1950, Suzuki viu o pai sucumbir a um cancro no cólon quando tinha apenas cinco anos. Aos oito, é a irmã que lhe proporciona o primeiro contato com a música, ao oferecer-lhe uma flauta. “Depois, deu-me um clarinete e um saxofone”, contou o músico à “Vice”, em 2014. “Oferecia-me um instrumento diferente a cada aniversário. Também tinha uma guitarra e um órgão. Ela queria que eu tocasse música”.

Na adolescência, o fervor revolucionário tomou-lhe conta do espírito. Inspiraram-no os movimentos de protesto contra a presença do exército norte-americano no Japão, assim como as lutas estudantis que marcaram a década e, do outro lado do Pacífico, os hippies e o verão do amor. Parte para a Europa, começando por assentar numa comuna da Suécia, daí viajando até à França, Finlândia, Suíça, Reino Unido e, finalmente, Alemanha, procurando sobreviver enquanto músico de rua ou até pintor.

Em Munique, chamou a atenção dos produtores de uma versão local do musical “Hair”, tendo sido contratado para tocar guitarra. Tal trabalho permitiu-lhe juntar um bom pé de meia, ainda que metade do seu tempo fosse passado na mesma comuna onde residiam os Amon Düül, outra das bandas que marcaram o período mais fértil do rock germânico (que se viria a apelidar de krautrock). No entanto, “Hair” não era coisa que pudesse durar. “Passados três meses, sentia-me frustrado. Estava a fazer a mesma coisa, todos os dias”, contou à “Vice”. “Todos os dias, ia para a rua e fazia uma performance de rua, ou limitava-me a gritar. Os Can cruzaram-se comigo e pediram-me para ser o vocalista deles, não porque gostassem da minha voz, mas porque queriam alguém que parecesse um alienígena”.

O “alienígena” não precisou sequer de um ensaio para entrar para o grupo; eram outros tempos, onde mais que a técnica (e isto não significa que os Can não soubessem tocar) importava a liberdade, a espontaneidade, a improvisação, a busca por algo nunca antes visto, ou no caso, escutado. Quer o público aprovasse, quer não. Em “Future Days”, livro sobre a história do krautrock e da Alemanha pós-guerra, David Stubbs recorda o primeiro encontro dos Can featuring Damo Suzuki, nessa mesma noite em que o convite foi endereçado ao japonês: “todos os que estavam no Blow-Up [antiga discoteca em Munique] fugiram a sete pés. Dois deles ainda os ameaçaram com os punhos”. A lenda conta-nos, aliás, que o ator britânico David Niven, vencedor de um Óscar em 1958 pelo seu trabalho em “Vidas Separadas”, era um dos presentes... “Peguntei-lhe o que ele tinha achado da música. E ele respondeu que adorou, mas que não sabia que era música”, recorda o baixista Holger Czukay no mesmo livro.

O primeiro trabalho de Damo Suzuki com os Can foi “Soundtracks”, álbum editado em 1970. O processo de gravação, recorda o teclista Irmin Schmidt em “All Gates Open”, livro que relata a história dos Can, não foi fácil. “O Damo tinha dificuldades em ver-se parte integrante do grupo”, diz. “Não discutia, mas não tinha boa cara. Pensávamos que tinha mau feitio. Mas, na verdade, só tinha dúvidas em relação a ter feito a coisa certa. O que é compreensível: nós éramos trabalhadores muito disciplinados, e ele nunca tinha sido disciplinado na vida”.

Soundtracks”, compilação que reúne temas que os Can compuseram para diversos filmes, conta com a presença, no alinhamento, da fantasticamente psicadélica 'Mother Sky', onde já é possível um vislumbre da anti-poética de Suzuki. Mas era ainda um aquecimento para o que viria a seguir: “Tago Mago”, a obra-prima dos Can e disco que é considerado como um dos melhores da história da música gravada. Numa carta enviada a Birgitta Engman, amiga de Suzuki durante os tempos deste na Suécia, o japonês refere-se a “Tago Mago” – à altura ainda por gravar – como “um disco de classe mundial”, onde a música “não é música pop, mas a música que gostamos de tocar, a nossa personalidade”.

Se muito do fascínio por “Tago Mago” tem origem no groove (como exemplificado pelos 18 minutos e 32 segundos de 'Halleluhwah', a repetição como catarse), o demais é entregue à prestação vocal de Damo Suzuki. “O que ele cantava era quase dadaísta; uma mistura de inglês, alemão, russo, japonês, e frases que não pertenciam a linguagem alguma”, explica Schmidt em “Future Days”.”E isso era ótimo. Não existia mensagem, apenas som. As letras eram completamente desinteressantes”. O que não significa, claro, que não se possa apreciar o lamento inexpressivo de uma canção como 'Mushroom', que parece fazer referência às mesmas bombas atómicas que destruíram duas cidades no país de Suzuki: When I saw mushroom head / I was born and I was dead.

Tago Mago” não valeu aos Can reconhecimento imediato, mas valeu-lhes um elogio do compositor alemão Karlheinz Stockhausen, com quem alguns dos seus memebros tinham estudado, e que era notoriamente difícil de agradar. O sucesso, e esta é uma palavra carregada de relatividade, só viria depois, com 'Spoon', single que vendeu mais de 300 mil cópias na Alemanha após ter sido utilizado como tema na série televisiva “Das Messer”. Por esta altura, e depois de várias apresentações elogiadíssimas, o grupo começou a criar ondas também no Reino Unido, o que, inevitavelmente, lhes colocou alguma pressão nos ombros.

A pressão resultaria em “Ege Bamyası”, igualmente elogiadíssimo, mas onde a falta de material levou os Can a incluir, à pressa, três singles anteriores: 'Spoon', mas também 'Vitamin C' (Damo Suzuki quase como um nutricionista psicótico: You're losing your Vitamin C!) e 'I'm So Green'. “Ege Bamyası” acabaria por ser um dos álbuns mais influentes dos Can, inspirando gente do rock alternativo norte-americano como os Pavement ou os Sonic Youth, passando pelos Portishead e chegando, até, a Kanye West, que samplou 'Sing Swan Song' na composição de 'Drunk and Hot Girls', tema de “Graduation” (2007).

Depois de gravar “Ege Bamyası”, Suzuki voltou ao Japão, pela primeira vez em seis anos, para visitar a família. O reencontro com a terra pátria não foi, no entanto, o melhor. “É um país horrível”, afirmou, numa entrevista replicada em “All Gates Open”. “Vivo perto de Tóquio e há tantas fábricas, tanto trânsito... Gosto mais de viver [na Alemanha] porque tudo é mais lento. Não creio que seja japonês, sou talvez um alemão que sabe falar muito bem japonês”.

A sua desilusão com o país do sol nascente deu origem ao seu último álbum com os Can, “Future Days”, onde o próprio grupo parece ter refreado a velocidade com que se apresentava em “Tago Mago” e, a espaços, em “Ege Bamyası”. Mais atmosférico que os anteriores, “Future Days” até tem uma pequena ligação espiritual a Portugal: o início de 'Bel Air', praia imensa pontilhada por uma guitarra com eco e o som da maré, foi uma tentativa de dar som ao que o guitarrista Michael Karoli tinha visto durante umas férias na costa portuguesa. “Dá para imaginar Damo como uma ave marinha, voando sobre este paraíso costeiro”, escreve Rob Young em “All Gates Open”.

A calmaria do álbum não se traduzia, porém, numa calmaria no seio do grupo. Foi por esta altura que Suzuki descobriu a religião, passando a “concentrar-se menos na música e a contestar mais coisas absolutamente ridículas”, conta Schmidt. Na sua última sessão com o grupo, após uma curta digressão pela Alemanha, o músico limitou-se a guardar o microfone no bolso e a sair do estúdio, para nunca mais colaborar com os Can. “Foi muito fácil deixar os Can” depois de gravar “Future Days”, contou ao website “Terrascope”. “Não quis mais nada deles depois desse disco. Musicalmente, estava muito satisfeito. Era uma boa altura para começar uma vida nova”.

A novidade levou-o a um hiato da música por uma década, durante o qual se mudou para a cidade de Düsseldorf, trabalhando em várias áreas: construção civil, rececionista de hotel, vendedor de carros antigos. Após divorciar-se da sua primeira esposa, voltou à arte, mas sem fincar raízes onde quer que fosse: fundou uma espécie de coletivo, a que chamou “Network”, tocando por todo o mundo com músicos locais, gravando com os Mugstar ou Omar Rodriguez-Lopez (At the Drive-In, Mars Volta), e pisando palcos com bandas como os Mogwai, Black Midi ou os portugueses Sunflare, com quem se apresentou pela última vez em Portugal, no Out.Fest, no Barreiro, em 2011.

Nos anos que se seguiram à sua saída dos Can, Suzuki referiu-se por diversas vezes aos seus antigos colegas como “aquela banda alemã”, deixando subentendida a ideia de que vivia numa relação de amor-ódio com a sua própria história. “Não estou interessado em focar-me no passado, porque não o posso alterar”, explicou, ao “The Guardian”. “Se não o posso alterar, não quero passar o meu tempo lá. Gosto de passar o meu tempo no agora, porque aí posso criar algo de novo”.

Através da sua “Network”, deu centenas e centenas de concertos, mas gravou poucos discos, também para se manter fiel a essa ideia de novidade. “Não gosto de tocar sempre a mesma peça. A repetição é aborrecida”, contou. “Todas as performances devem ser experiências únicas. A música é, para mim, como um desporto: antes do jogo não sabes o resultado. As pessoas não devem ir a um concerto e ter expetativas em relação ao mesmo. Deve ser uma experiência que vivemos ambos, uma comunicação”.

A comunicação resultou num livro, “I Am Damo Suzuki”, escrito com a ajuda de Paul Woods e editado em 2019, e num documentário, “Energy”, estreado em 2022 e que conta a sua luta contra o cancro. “É uma mensagem para todos os que têm uma doença grave”, explicou aquando do lançamento do filme. “Sobrevivi a isto, e se alguém vir este filme talvez se sintam motivados e fortes. Vejo, agora, um futuro brilhante. Não tenho medo de nada”. Talvez seja a frase que melhor descreve o agora falecido músico: nunca teve medo de nada e fez tudo quanto quis. Recuperamos a canção e entendemos perfeitamente Mark E. Smith. Todos queremos ser Damo Suzuki.

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