domingo, 11 de fevereiro de 2024

Damo Suzuki (1950-2024)

 


Ain't got no time for western medicine / I am Damo Suzuki, cantava Mark E. Smith na bonita homenagem que os seus The Fall fizeram ao emblemático vocalista dos Can, uma das maiores influências do grupo de Manchester. O ritmo é poderoso, os versos são, mais que cantados ou gritados, declamados numa voz anasalada e desafiante. Anos mais tarde, o baixista Steve Henley revelou ter-se encontrado com Suzuki, numa discoteca na Alemanha, e o simpático japonês ter-lhe-á respondido, com um sorriso: I am Damo Suzuki.

Era efetivamente Damo Suzuki, o homem que os restantes Can foram buscar para substituir o seu vocalista original, o norte-americano Malcolm Mooney. E era efetivamente alguém sem tempo para “a medicina ocidental”, após ter abraçado a fé em 1973, tornando-se Testemunha de Jeová. “A Alemanha está a passar por uma fase horrível: temos demasiados vacinados”, contou ao “i”, em 2021, em plena pandemia da Covid-19 (para além de negacionista da Covid, Suzuki era-o também da Sida). Ao longo da sua vida, teve que lidar, por duas ocasiões, com um cancro no cólon, a mesma doença que tinha vitimado o seu pai: sobreviveu a ambas. “Sou um otimista. Se tiverem pensamentos positivos, tudo correrá bem”, afirmou ao “The Guardian” em 2022.

Não foram para já avançadas as causas da sua morte. Porém, acaba por não interessar como Damo Suzuki morreu. Importa, muito mais, lembrar como ele viveu: como um espírito livre, tanto na sua forma de estar no mundo como na sua forma de estar na música. Nos Can, com quem gravou a tríade “Tago Mago” (1971), “Ege Bamyası” (1972) e “Future Days” (1973), os álbuns mais celebrados do grupo alemão e três dos melhores da história do rock, tornou-se conhecido pela sua forma de (não) cantar: a linguagem inglesa, muitas vezes macarrónica, utilizada como instrumento, os versos das canções ali presentes como puro automatismo (Sprechgesang, chamam-lhe os alemães). Nos Can, e mesmo nos seus trabalhos posteriores, o que importava não era ter algo a dizer, mas sim dizer algo.

Essa forma de criar tem, podemos dizê-lo, origem no período revolucionário da época, em que o maio de 68 partiu de Paris para incendiar o mundo, mas também nas origens do próprio Damo Suzuki, nascido no Japão do pós-guerra. Cinco anos após assinarem a sua rendição, na sequência das bombas atómicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, os japoneses foram obrigados a reinventar-se como nação – política, tecnológica, e culturalmente. “Tinham a capacidade, e o desejo, de pegar naquilo que os atraíam mais na música ocidental, e a motivação para o cruzar com as formas musicais japonesas que consideravam adequadas”, escreve Julian Cope em “Japrocksampler”. “Combine-se isso com o amor dos japoneses por expressões em japanglish [gíria utilizada para descrever o uso indevido ou a corrupção da língua inglesa por falantes nativos de línguas asiáticas], e o resultado é algo de loucos; Damo Suzuki fê-lo e inspirou uma geração de músicos punk e pós-punk, eu incluído”.

Cope, a voz dos Teardrop Explodes, sabe bem do que fala. Mas nem precisava de ter sido ele a dizê-lo; podia tê-lo dito Johnny Rotten, um dos poucos punks que não tinha vergonha de admitir o seu amor pelo rock progressivo, disse-o, e cantou-o, o já supracitado Mark E. Smith. E tudo poderia ter sido diferente se não fosse pela vontade de Suzuki de sair da sua ilha e partir pelo mundo, assim como tudo poderia ter sido diferente se os Can não se tivessem cruzado com o japonês, em Munique, antes de um espetáculo.

Nascido na cidade de Kobe, a sétima maior do Japão, em 1950, Suzuki viu o pai sucumbir a um cancro no cólon quando tinha apenas cinco anos. Aos oito, é a irmã que lhe proporciona o primeiro contato com a música, ao oferecer-lhe uma flauta. “Depois, deu-me um clarinete e um saxofone”, contou o músico à “Vice”, em 2014. “Oferecia-me um instrumento diferente a cada aniversário. Também tinha uma guitarra e um órgão. Ela queria que eu tocasse música”.

Na adolescência, o fervor revolucionário tomou-lhe conta do espírito. Inspiraram-no os movimentos de protesto contra a presença do exército norte-americano no Japão, assim como as lutas estudantis que marcaram a década e, do outro lado do Pacífico, os hippies e o verão do amor. Parte para a Europa, começando por assentar numa comuna da Suécia, daí viajando até à França, Finlândia, Suíça, Reino Unido e, finalmente, Alemanha, procurando sobreviver enquanto músico de rua ou até pintor.

Em Munique, chamou a atenção dos produtores de uma versão local do musical “Hair”, tendo sido contratado para tocar guitarra. Tal trabalho permitiu-lhe juntar um bom pé de meia, ainda que metade do seu tempo fosse passado na mesma comuna onde residiam os Amon Düül, outra das bandas que marcaram o período mais fértil do rock germânico (que se viria a apelidar de krautrock). No entanto, “Hair” não era coisa que pudesse durar. “Passados três meses, sentia-me frustrado. Estava a fazer a mesma coisa, todos os dias”, contou à “Vice”. “Todos os dias, ia para a rua e fazia uma performance de rua, ou limitava-me a gritar. Os Can cruzaram-se comigo e pediram-me para ser o vocalista deles, não porque gostassem da minha voz, mas porque queriam alguém que parecesse um alienígena”.

O “alienígena” não precisou sequer de um ensaio para entrar para o grupo; eram outros tempos, onde mais que a técnica (e isto não significa que os Can não soubessem tocar) importava a liberdade, a espontaneidade, a improvisação, a busca por algo nunca antes visto, ou no caso, escutado. Quer o público aprovasse, quer não. Em “Future Days”, livro sobre a história do krautrock e da Alemanha pós-guerra, David Stubbs recorda o primeiro encontro dos Can featuring Damo Suzuki, nessa mesma noite em que o convite foi endereçado ao japonês: “todos os que estavam no Blow-Up [antiga discoteca em Munique] fugiram a sete pés. Dois deles ainda os ameaçaram com os punhos”. A lenda conta-nos, aliás, que o ator britânico David Niven, vencedor de um Óscar em 1958 pelo seu trabalho em “Vidas Separadas”, era um dos presentes... “Peguntei-lhe o que ele tinha achado da música. E ele respondeu que adorou, mas que não sabia que era música”, recorda o baixista Holger Czukay no mesmo livro.

O primeiro trabalho de Damo Suzuki com os Can foi “Soundtracks”, álbum editado em 1970. O processo de gravação, recorda o teclista Irmin Schmidt em “All Gates Open”, livro que relata a história dos Can, não foi fácil. “O Damo tinha dificuldades em ver-se parte integrante do grupo”, diz. “Não discutia, mas não tinha boa cara. Pensávamos que tinha mau feitio. Mas, na verdade, só tinha dúvidas em relação a ter feito a coisa certa. O que é compreensível: nós éramos trabalhadores muito disciplinados, e ele nunca tinha sido disciplinado na vida”.

Soundtracks”, compilação que reúne temas que os Can compuseram para diversos filmes, conta com a presença, no alinhamento, da fantasticamente psicadélica 'Mother Sky', onde já é possível um vislumbre da anti-poética de Suzuki. Mas era ainda um aquecimento para o que viria a seguir: “Tago Mago”, a obra-prima dos Can e disco que é considerado como um dos melhores da história da música gravada. Numa carta enviada a Birgitta Engman, amiga de Suzuki durante os tempos deste na Suécia, o japonês refere-se a “Tago Mago” – à altura ainda por gravar – como “um disco de classe mundial”, onde a música “não é música pop, mas a música que gostamos de tocar, a nossa personalidade”.

Se muito do fascínio por “Tago Mago” tem origem no groove (como exemplificado pelos 18 minutos e 32 segundos de 'Halleluhwah', a repetição como catarse), o demais é entregue à prestação vocal de Damo Suzuki. “O que ele cantava era quase dadaísta; uma mistura de inglês, alemão, russo, japonês, e frases que não pertenciam a linguagem alguma”, explica Schmidt em “Future Days”.”E isso era ótimo. Não existia mensagem, apenas som. As letras eram completamente desinteressantes”. O que não significa, claro, que não se possa apreciar o lamento inexpressivo de uma canção como 'Mushroom', que parece fazer referência às mesmas bombas atómicas que destruíram duas cidades no país de Suzuki: When I saw mushroom head / I was born and I was dead.

Tago Mago” não valeu aos Can reconhecimento imediato, mas valeu-lhes um elogio do compositor alemão Karlheinz Stockhausen, com quem alguns dos seus memebros tinham estudado, e que era notoriamente difícil de agradar. O sucesso, e esta é uma palavra carregada de relatividade, só viria depois, com 'Spoon', single que vendeu mais de 300 mil cópias na Alemanha após ter sido utilizado como tema na série televisiva “Das Messer”. Por esta altura, e depois de várias apresentações elogiadíssimas, o grupo começou a criar ondas também no Reino Unido, o que, inevitavelmente, lhes colocou alguma pressão nos ombros.

A pressão resultaria em “Ege Bamyası”, igualmente elogiadíssimo, mas onde a falta de material levou os Can a incluir, à pressa, três singles anteriores: 'Spoon', mas também 'Vitamin C' (Damo Suzuki quase como um nutricionista psicótico: You're losing your Vitamin C!) e 'I'm So Green'. “Ege Bamyası” acabaria por ser um dos álbuns mais influentes dos Can, inspirando gente do rock alternativo norte-americano como os Pavement ou os Sonic Youth, passando pelos Portishead e chegando, até, a Kanye West, que samplou 'Sing Swan Song' na composição de 'Drunk and Hot Girls', tema de “Graduation” (2007).

Depois de gravar “Ege Bamyası”, Suzuki voltou ao Japão, pela primeira vez em seis anos, para visitar a família. O reencontro com a terra pátria não foi, no entanto, o melhor. “É um país horrível”, afirmou, numa entrevista replicada em “All Gates Open”. “Vivo perto de Tóquio e há tantas fábricas, tanto trânsito... Gosto mais de viver [na Alemanha] porque tudo é mais lento. Não creio que seja japonês, sou talvez um alemão que sabe falar muito bem japonês”.

A sua desilusão com o país do sol nascente deu origem ao seu último álbum com os Can, “Future Days”, onde o próprio grupo parece ter refreado a velocidade com que se apresentava em “Tago Mago” e, a espaços, em “Ege Bamyası”. Mais atmosférico que os anteriores, “Future Days” até tem uma pequena ligação espiritual a Portugal: o início de 'Bel Air', praia imensa pontilhada por uma guitarra com eco e o som da maré, foi uma tentativa de dar som ao que o guitarrista Michael Karoli tinha visto durante umas férias na costa portuguesa. “Dá para imaginar Damo como uma ave marinha, voando sobre este paraíso costeiro”, escreve Rob Young em “All Gates Open”.

A calmaria do álbum não se traduzia, porém, numa calmaria no seio do grupo. Foi por esta altura que Suzuki descobriu a religião, passando a “concentrar-se menos na música e a contestar mais coisas absolutamente ridículas”, conta Schmidt. Na sua última sessão com o grupo, após uma curta digressão pela Alemanha, o músico limitou-se a guardar o microfone no bolso e a sair do estúdio, para nunca mais colaborar com os Can. “Foi muito fácil deixar os Can” depois de gravar “Future Days”, contou ao website “Terrascope”. “Não quis mais nada deles depois desse disco. Musicalmente, estava muito satisfeito. Era uma boa altura para começar uma vida nova”.

A novidade levou-o a um hiato da música por uma década, durante o qual se mudou para a cidade de Düsseldorf, trabalhando em várias áreas: construção civil, rececionista de hotel, vendedor de carros antigos. Após divorciar-se da sua primeira esposa, voltou à arte, mas sem fincar raízes onde quer que fosse: fundou uma espécie de coletivo, a que chamou “Network”, tocando por todo o mundo com músicos locais, gravando com os Mugstar ou Omar Rodriguez-Lopez (At the Drive-In, Mars Volta), e pisando palcos com bandas como os Mogwai, Black Midi ou os portugueses Sunflare, com quem se apresentou pela última vez em Portugal, no Out.Fest, no Barreiro, em 2011.

Nos anos que se seguiram à sua saída dos Can, Suzuki referiu-se por diversas vezes aos seus antigos colegas como “aquela banda alemã”, deixando subentendida a ideia de que vivia numa relação de amor-ódio com a sua própria história. “Não estou interessado em focar-me no passado, porque não o posso alterar”, explicou, ao “The Guardian”. “Se não o posso alterar, não quero passar o meu tempo lá. Gosto de passar o meu tempo no agora, porque aí posso criar algo de novo”.

Através da sua “Network”, deu centenas e centenas de concertos, mas gravou poucos discos, também para se manter fiel a essa ideia de novidade. “Não gosto de tocar sempre a mesma peça. A repetição é aborrecida”, contou. “Todas as performances devem ser experiências únicas. A música é, para mim, como um desporto: antes do jogo não sabes o resultado. As pessoas não devem ir a um concerto e ter expetativas em relação ao mesmo. Deve ser uma experiência que vivemos ambos, uma comunicação”.

A comunicação resultou num livro, “I Am Damo Suzuki”, escrito com a ajuda de Paul Woods e editado em 2019, e num documentário, “Energy”, estreado em 2022 e que conta a sua luta contra o cancro. “É uma mensagem para todos os que têm uma doença grave”, explicou aquando do lançamento do filme. “Sobrevivi a isto, e se alguém vir este filme talvez se sintam motivados e fortes. Vejo, agora, um futuro brilhante. Não tenho medo de nada”. Talvez seja a frase que melhor descreve o agora falecido músico: nunca teve medo de nada e fez tudo quanto quis. Recuperamos a canção e entendemos perfeitamente Mark E. Smith. Todos queremos ser Damo Suzuki.

quinta-feira, 30 de março de 2023

Miley Cyrus - Endless Summer Vacation (2023)

 


Eu gosto da Miley Cyrus. Ou, melhor dizendo: eu gosto do conceito de uma Miley Cyrus: nepobaby opta por seguir as pisadas do pai, acaba na Disney, constrói uma legião de fãs (sobretudo crianças), descarta o seu passado musical com uma reinvenção altamente sexuada que passará a encher estádios (sobretudo de pais e crianças), manda nudes ao Wayne Coyne e lança o melhor álbum da carreira, lembra-se que guitarras é que é e faz um disco de rock merdoso anos 80, chega aos 30 anos e começa a sentir nostalgia pela juventude passada ao mesmo tempo que tenta, uma vez mais, ser radiofónica, com uma ajudinha da country de merda da família.

Gosto deste conceito porque mostra que uma estrela pop não tem de existir numa redoma e manter a mesma personalidade para sempre: a Miley já vestiu (e despiu) tantas roupas e identidades que é uma espécie de Fernando Pessoa das majors, mesmo que nunca tenha escrito algo tão violento quanto a 'Ode Marítima'. Numa era em que se diz que as pessoas são CaNcElAdAs por dizerem coisas erradas, a Miley é das poucas que nunca se preocupou em dizer a coisa certa assim que a Hannah Montana se transformou num autocolante perdido nos cadernos do ensino básico. 

Foi dela um dos melhores concertos que já vi de uma grande estrela pop: Altice Arena, 2014, bancadas cheias de famílias que achavam piada àquela loirinha com um microfone, e que muito depressa deixaram de lhe achar piada assim que ela começou a simular masturbação em palco. Chocar a burguesia é uma coisa maravilhosa. A Miley Cyrus, nessas duas horas, foi a enfant mais terrible deste lado do meu coração anarca. E ainda acabou a cantar Smiths, que é uma coisa que poucos hoje em dia (e bem, se calhar) fazem.

Gosto do conceito de uma Miley Cyrus porque mesmo com uma máquina por trás houve ali um breve instante em que ela tentou devorar a máquina. Falhou miseravelmente, e nunca mais poderá voltar a esse período. É pena, porque o "Dead Petz" é realmente bastante bom e a minha cabeça ainda se lembra, ora por ora, do balançar redneck da '4x4'.

Mas este "Endless Summer Vacation"? É um lembrete do porquê de eu gostar tanto do inverno.

quinta-feira, 9 de março de 2023

Ballboy - Club Anthems 2001 (2001)

 


Há discos que nos acertam em cheio. O falecido Fernando Magalhães, por exemplo, tinha uma história gira sobre a forma como o “Metal Box”, dos PIL, o marcou. Mas se eu escrevo esta frase não é para fazer uma graçola saída do manual de instruções dos Irmãos Marx, e sim para dar uma relevância ligeiramente mais espiritual, mais mística, à coisa. O que, para um antiteísta convicto, é dizer muito.

Formados em 1997, os Ballboy tiveram uma existência complicada. Não por quaisquer quezílias internas ou porque uma tragédia se abateu sobre os membros do grupo, mas porque foram praticamente obrigados a viver à sombra de uma outra banda escocesa: os Belle And Sebastian, com quem foram – e continuam a ser – comparados. Em 2002, o vocalista e guitarrista Gordon McIntyre afirmou numa entrevista que «é sempre um elogio sermos comparados a boas bandas, mas essas comparações são preguiçosas», que é a resposta standard de toda e qualquer banda indie sem paciência para aturar palermas.

John Peel, que os adorava, deu-lhes o destaque merecido, mas a história da música alternativa parece tê-los colocado ao nível de uma nota de rodapé. A prova viva disso é que só este ano, com a reedição em vinil deste mesmo “Club Anthems 2001”, é que muitos – eu incluído – chegaram até eles. O que, considerando que estão aqui presentes algumas das melhores canções das nossas vidas, é um verdadeiro absurdo. Basta começar pelo início: a doçura de 'Donald In The Bushes With A Bag Of Glue', onde a patetice – e, porque não, uma certa poética meio pretensiosa, meio witty – se cruza com um ritmo constante e simplista e melodias de xilofone.

Mas não é só. Há o espaço, em formato acústico, contido na maravilhosa 'A Day In Space', como se Jason Pierce nunca tivesse ficado agarrado ao cavalo (e escrevê-lo é preguiçoso da minha parte, mas caguei). Há 'Dumper Truck Racing', uma carta de esperança para o futuro de todos os adolescentes, tenham eles a idade que tiverem. Até sabe melhor com uma depressão nos cornos e é melhor que diazepam. Há 'Public Park', dona deste verso maravilhoso: You are the most beautiful girl in the world / And he'll be Elvis Presley to your Marilyn Monroe..., e agora vocês reparam que estou a mencioná-las todas de seguida porque, caraças, este é um disco / colectânea absolutamente perfeitos do início ao fim, e não falar de todas as canções aqui incluídas dá-me urticária. Mas como estou a ouvi-lo, ao disco, neste preciso momento e não me apetece perder mais tempo a escrever, resta-me lamentar que 'I've Got Pictures Of You In Your Underwear' não seja tão verdade quanto desejo, que é uma forma simpática de dizer mandem nudes. E agora vou continuar a sonhar, se fizerem o favor.


quarta-feira, 1 de março de 2023

Pink Floyd - The Dark Side Of The Moon (1973)

 


The lunatic is on the grass...

A minha favorita sempre foi a 'Brain Damage' – a forma como o wah-wah da 'Any Colour You Like' é cortado de forma quase abrupta, para dar lugar a uma melodia cheia, realmente, de cor, os versos a abrir caminho por um estado de alma muito britânico e para o qual arranjaram uma palavra que considero belíssima: madcap, que não só significa o típico “louco” como também “divertido” ou “excêntrico”. Até pode, aliás, ser as três coisas numa só. Mas falava de 'Brain Damage', que me conquistou por essa sua natureza etérea, LSD sinestésico onde fadinhas e elfos correm pelos jardins das universidades.

Só mais tarde, quando abri caminho por toda a discografia dos Pink Floyd e, por arrasto, pela sua história é que percebi que 'Brain Damage' era sobre Syd Barrett, o génio que da compreensão foi ao seu oposto e acabou perdido para a doença mental. E se a banda da qual fazes parte começar a tocar canções diferentes? Pois, isso chegou a acontecer de facto, quando Syd ainda fazia parte da banda. Se foi ele o motor dos Pink Floyd e se eles soavam pior sem ele, é discussão que não vai chegar a lado algum (um pouco à semelhança daquelas discussões sobre o melhor álbum dos Beatles, que é de facto o “Revolver”, e quem não concorda pode chupar-me a piça). Também já fui desses: oh, sim, a 'Interstellar Overdrive' é melhor que tudo o resto, a partir daí ficaram azeiteiros, etc., etc. Depois cresci e percebi que a segunda parte da frase era mentira, que a primeira até podia ser algo verdade – para quem gosta de chutar electricidade numa veia –, e que “The Dark Side Of The Moon” é, ao lado de “The Wall”, o disco mais completo dos Pink Floyd, sendo estritamente necessária a sua audição como um todo, com ou sem “O Feiticeito de Oz” a dar na televisão (e eu nunca sequer o vi do início ao fim).

Em “The Dark Side Of The Moon”, livro escrito por John Harris sobre a história do álbum, Roger Waters oferece uma explicação ligeiramente mais filosófica para 'Brain Damage': «Quando vês isso a acontecer» – isto é, os problemas mentais de Syd – «a alguém de quem foste amigo próximo e conheceste durante quase toda a tua vida, faz com que te concentres no quão efémeras podem ser as sensibilidades e capacidades mentais de uma pessoa». Na 'Brain Damage', continuou, «expressámos a ideia de que uma pessoa não é, necessariamente, dona da sua própria identidade; somos todos marionetas, e as cordas das nossas vidas são puxadas pela nossa história, pelas nossas experiências, pelos nossos pais, pelos nossos antepassados».

(Ele até dizia coisas giras antes de se tornar num tankie de merda)

The Dark Side Of The Moon”, o álbum, pode ser assim a tentativa de Waters de tentar reunir, num grande congresso cósmico, todos aqueles que se sentem ou sentiram à parte a dada altura das suas vidas – os que foram apelidados de loucos, de hippies malditos por acreditarem no amor, de parasitas sociais por não acreditarem na libertação inerente ao trabalho (cruzes credo). «Se sentirem que são loucos porque acham que está tudo louco, não estão sozinhos», acrescentaria ainda o baixista. Se não há espaço para nós na terra e se a história do mundo se define num nós contra eles, mais vale mesmo ir morar para o lado negro da lua – aquele que nunca é visível da nossa perspectiva.

Desde que foi lançado que “The Dark Side Of The Moon” é um dos álbuns mais bem sucedidos da história da música gravada, deixando os seus compositores com a carteira bem recheada, financiando “O Cálice Sagrado” dos Monty Python, ensinando milhões de baixistas a tocar a 'Money' (culpado) e, como escreve Harris, alimentando a raiva dos adolescentes «que se começam a querer rebelar contra o status quo». A rebelião ali contida teve de passar por muito – os temas foram apresentados ao vivo bem antes de serem gravados em fita – e a Humanidade ali presente choca de frente com o facto de, à altura, os Pink Floyd terem começado a andar de costas voltadas (novamente culpa de Waters). Mas é uma rebelião, contra o sistema, tome ele a forma que tomar. «A ideia de base que liga todas essas canções – as pressões da vida moderna – encontraram um público universal, e continuam a prender a imaginação das pessoas», apontou Nick Mason na sua autobiografia.

Claro que “The Dark Side Of The Moon” também tem falhas, nomeadamente, ter inspirado os Dream Theater a fazer um álbum de versões de merda. A outra foi ter marcado o início do fim dos Pink Floyd: para trás ficaram as longas jams psicadélicas, para a frente ficaram as canções polidas e o ego de Roger Waters, juntamente com a ansiedade provocada pelas editoras em busca de um volume dois: «Ficámos mais conscientes daquilo que cada membro da banda havia contribuído», escreve Mason, indicando o fim da democracia popular e o início de um comité central de um homem só. A última faísca dos velhos Pink Floyd brilhou no Live 8, quando 'Breathe' entrou no Hyde Park, Waters abanou a cabeça ao som de 'Money' e um abraço final pôs termo ao passado daquelas quatro pessoas; daí para a frente tudo foi miséria, bate-boca, tiradas absurdas. Este ano Waters prometeu lançar uma nova versão de “The Dark Side Of The Moon”, que independentemente das cópias que venda irá, sempre, falhar miseravelmente. Porque um lunático só é forte no meio dos seus semelhantes.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Neutral Milk Hotel - In The Aeroplane Over The Sea (1998)

 

Quando fui a Amesterdão, passei pela casa, hoje museu, onde Anne Frank viveu uma das histórias mais populares do Holocausto. "Popular", culpa de um "Diário" onde redigiu os seus pensamentos adolescentes enquanto se escondia da Gestapo, e que é hoje em dia lido por milhões atrás de milhões de pessoas, quer em contexto escolar, quer por curiosidade pessoal. Eu me confesso: nunca li o "Diário" e, quando passei pela casa, com um monte de gente na fila para entrar (não o fiz porque os bilhetes só podiam ser comprados online e eu não estive para me chatear), o meu primeiro pensamento não foi Anne Frank, e sim 'Holland, 1945', uma das canções que Jeff Mangum lhe dedicou, tão comovido ficou com a história da jovem judia. 

Isto faz de mim uma pessoa horrível, como é óbvio: quem é que, no seu perfeito juízo, é confrontado com um dos maiores horrores que a humanidade já produziu e só consegue levar a mente para o campo da música pop?

Não sou, no entanto, a única pessoa horrível neste mundo. E neste contexto. É difícil imaginar que a casa de Anne Frank não seja, também, motivo de peregrinação para os fãs de "In The Aeroplane Over The Sea", tamanho é o impacto desse disco numa franja da população que prefere que a sua música seja menos sobre abanar o cu (e não há absolutamente nenhum mal em abanar o cu, atenção) e mais sobre letras a roçar o surreal e a infância, menos sobre ser uma estrela teatral e mais sobre autenticidade (seja lá isso o que for), menos sobre glitter e mais sobre camisas de flanela e punk rock, menos sobre quem aspira a tomar de assalto uma cidade e mais sobre gente rude do campo que até leu os mesmos livros que o pessoal leu ou lerá na universidade. Um impacto que passou de geração em geração ou, melhor dizendo, um impacto que só existiu na geração seguinte àquela que viu o disco ser lançado. A culpa é da qualidade memética da capa (uma mulher com cabeça de tambor? uma senhora cabeça-de-batata saída de um "Toy Story" hipster?), ou do enorme gozo que dá gritar I LOVE YOU, JESUS CHRIST, mesmo que na maior parte das vezes nos estejamos nas tintas para Cristo. 

(A culpa também é do 4chan, provavelmente uma das poucas boas culpas que o 4chan tem no cartório.)

Não que o disco tenha sido imediatamente esquecido, quando foi originalmente lançado, em 1998. Até porque os próprios Neutral Milk Hotel, que para todos os efeitos são um veículo exclusivo de Mangum, com a ajuda dos seus amigos da Elephant 6, já tinham lançado um álbum que havia caído no goto de boa gente, dois anos antes: "On Avery Island". A Merge esperava vender o mesmo número de cópias de "In The Aeroplane Over The Sea" que esse disco de estreia, disponibilizando 5500 cópias em CD e 1600 em vinil. O que a Merge não esperava é que este fosse um daqueles álbuns em que o passa-palavra se tornaria quase tão importante quanto o álbum em si: quem viu os Neutral Milk Hotel ao vivo, por esta altura, apressava-se a contar o que viu aos amigos mais cultos, e quando esses amigos o viam apressavam-se a contar a outros amigos, e por aí fora.

«É extremamente difícil escrever sobre um álbum como 'In The Aeroplane Over The Sea'», aponta Adam Clair em "Endless Endless", livro indispensável para todos aqueles que queiram entender melhor como funcionava a Elephant 6, colectivo que - não só com os Neutral Milk Hotel mas também com os Apples In Stereo ou os Olivia Tremor Control - alterou o panorama indie norte-americano de finais dos anos 90. E é difícil escrever sobre ele precisamente porque olhamos para a premissa inicial (o fascínio de Jeff Mangum com a pessoa e a vida de Anne Frank) e imediatamente pensamos: mas este gajo bate bem? Construir uma máquina do tempo para salvar a vida de Anne Frank? Semen stains the mountaintops? E essa cena de Jesus Cristo é mesmo crença?

(No mesmo livro, Clair aponta que essa verso em particular pode ser menos sobre o filho de Deus e mais sobre aquela interjeição particular que todos nós, até ateus, já dissemos em algum ponto das nossas vidas, fruto de uma educação e de vivermos numa sociedade minimamente católica. O que lhe retira alguma piada, mas que é ainda assim interessante).

Criado no seio de uma família religiosa mas não fanática, Mangum descreveu a sua infância como uma mistura entre «marijuana, Jesus Cristo e os Minutemen», o que valha a verdade é uma descrição perfeita de "In The Aeroplane Over The Sea". A sua qualidade drogada e psicadélica de baixa fidelidade, aliada à energia do punk, complementa letras carregadas de uma poética espiritual mas, sobretudo, inocente - nesse sentido infantilizado da inocência. Há poucas coisas que aqueçam mais o coração que isto, cantado de sorriso nos lábios:

And one day we will die
And our ashes will fly
From the aeroplane over the sea

Mangum andou a ler o "Diário" pouco antes de começar a compor essas canções, e a coisa abalou-o tanto que sentiu a necessidade de o botar cá para fora, em jorro. Segundo Robert Schneider, que lidera os Apples In Stereo e tocou em discos dos Neutral Milk Hotel, Mangum nem sequer era um grande leitor. «Esse é um dos poucos livros que ele leu, nessa altura», conta em "In The Aeroplane Over The Sea", o livro sobre o disco, da colecção 33 1/3. À "Puncture", Mangum explicou que as canções surgiram «de forma espontânea». «Levo algum tempo para perceber o que está a acontecer, liricamente falando; que tipo de história estou a contar [...] Quando estava a ler o livro, [Anne Frank] estava completamente viva para mim. Sabia o que iria acontecer. Mas é essa a cena: amas as pessoas porque conheces a história delas».

Estava errado. O público que ama Jeff Mangum ama-o mesmo não sabendo grande coisa acerca da sua história, ou precisamente por não o saber - se há algo de que o público gosta à séria é de um bom mistério ou de uma personagem que se apresenta ao mundo como não estando nem dentro nem fora da caixa, quer essa personagem tenha o nome Syd Barrett, Brian Wilson ou Burial. Quando alguém cria a sua arte sem se importar, nós tendemos a prestar atenção. «["In The Aeroplane Over The Sea"] foi criado para ser um álbum clássico, diz Schneider em "Endless Endless". "Putos no seu auge, sem dinheiro, a abrir os seus corações, sem interesses financeiros numa obra de arte pura é o cenário ideal. Sempre que alguém o faz, torna-se um clássico».

Tão clássico que Jeff Mangum, como Cobain anos antes, sentiu a necessidade de o rejeitar. No final de 1998, os Neutral Milk Hotel eram a banda indie por excelência; poucos meses depois, estavam desaparecidos em combate. «É possível que [Mangum] tenha sido vítima do seu próprio sucesso», afirma Clair. «As expetativas para o seu trabalho cresceram, e ele desenvolveu uma reputação de génio incompreensível. Quebrar essa mística poderia destruir algo que bateu em tantas e tantas pessoas». O que significou que a geração seguinte, que descobriu "In The Aeroplane Over The Sea" praticamente dez anos depois de ter sido lançado, só teve a oportunidade de constatar se o mito era real quando Mangum, primeiro, e com os Neutral Milk Hotel, depois, tocaram num par de Primaveras.

Confere: é extremamente difícil escrever sobre este álbum sem mencionar as partes óbvias, que é tudo aquilo que tentei colocar em cima. Não começou revoluções, começou religiões: venera-se "In The Aeroplane Over The Sea" pela música e pelas letras e pelas personagens Mangum/Anne e essa é uma veneração só nossa, um amor só nosso, que partilhamos com quem venha de boa vontade. Quem não o faz, tem que ser imediatamente rotulado como pagão, que é o que o Colbert devia ter feito aqui. Voltei a ouvi-o hoje e a minha nova parte favorita - que muda consoante as audições - é mesmo o final de 'Two-Headed Boy Pt. Two', com o som de Mangum a erguer-se e a sair do estúdio, como se tudo o que acontecera antes não fosse mais que uma sessão meio xamânica, uma espécie de festa comunitária em honra de uma figura mitológica que, só por acaso, morreu durante a II Grande Guerra. Daqui a outros 25 anos, continuaremos a lembrarmo-nos dele não pelas mudanças que provocou na sociedade, mas pelas mudanças que provocou em nós próprios - e se este linguajar soa meio hippie, que se foda, porque o disco também é meio hippie.

I
love
you
Jesus
Christ

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Air - Moon Safari (1998)

 

Os franceses tornam muito difícil gostarmos deles. Por um lado tiveram a Comuna de Paris, por outro têm a Frente Nacional; por um lado tiveram Zidane, por outro têm Benzema; por um lado têm a Costa Azul, por outro decidem vir para Portugal menosprezar quem não fala a porra da língua deles. Sim, isto é pessoal. Uma vez fui abordado no Chiado por uma francesa velha que queria indicações. Quando lhe respondi que falava mal francês e preferia o inglês, respondeu MAIS JE NE PARLE PAS ANGLAIS com a maior sobranceira do mundo, virou costas e foi embora. Espero que tenha acabado no fundo de uma qualquer falésia.

O ponto é este: todas as coisas incríveis que a cultura francesa nos dá levam imediatamente com um asterisco por causa do seu chauvinismo e altivez, e se acham que estou a generalizar todo um povo por causa da atitude de uns quantos, caguei, são franceses. Gainsbourg leva um asterisco porque, apesar de ser um génio, era também um idiota misógino (a Whitney Houston e a Catherine Ringer que o digam). Françoise Hardy leva um asterisco, porque cantou 'Le Premier Bonheur Du Jour' e 'Mon Amie La Rose' e 'Tous Les Garçons Et Les Filles' e 'Comment Te Dire Adieu', mas é uma beta liberal a roçar o facho. Os Daft Punk levam um asterisco, porque "Discovery" é um dos melhores álbuns da história pop, mas depois fizeram a 'Get Lucky'. Safa-se quem? Bem, safam-se os Air, que sempre pareceram uma dupla minimamente chill, meio que à semelhança da música que fazem.

Editado em 1998, "Moon Safari" ainda se apresenta, 25 anos depois, como a sua maior obra-prima. Emos dirão que isso não é verdade, que o "The Virgin Suicides" é melhor. Outros mencionarão o "Talkie Walkie" e a 'Alpha Beta Gaga' ou a 'Alone In Kyoto' porque viram o "Lost In Translation" e acharam esse filme mais que uma merda do caralho (estou disposto a lutar num ringue por isto: o 'Lost In Translation' é horrível e vocês só gostam por causa da banda-sonora). Ninguém falará do "Love 2" (que, diga-se, é bastante decente). A velha guarda vai rir-se ao lembrar-se que num blogue antigo "10 000 Hz Legend" foi descrito com um simples e lendário pá, é naquela. Pelo menos acho que foi esse. Se estiver enganado avisem.

Onde ia? Sim, "Moon Safari" é a obra-prima dos Air porque é o disco onde os franceses nos conseguem pôr a sonhar em tons retro, se quisermos ser minimamente poéticos. Há toda uma geração que viu o homem a pisar na Lua em directo e por conseguinte deixou de ter no espaço sideral uma novidade, mas desse momento impagável os seus filhos só tem o áudio, os vídeos e as fotografias. É como se nunca tivesse existido, porque a experiência só nos é contada em história, e a história é manipulada por E L E S

(melhor parar por aqui antes que achem que sou um chalupa das conspirações)

«Queríamos que "Moon Safari" fosse uma aventura, que levasse o 'som francês' a um lado diferente», explica Jean-Benoît Dunckel a Martin James em "French Connections", livro sobre a história e o impacto da música fait en France nos anos 90. Essa é a década em que os franceses têm de confrontar o seu racismo e as discrepâncias sociais via "La Haine", mas também é a década onde brancos de classe média-alta transformam o house e a disco em algo (ainda) mais refrescante. Ao contrário dos conterrâneos Daft Punk, os Air não se viraram para esses dois géneros, e sim para Gainsbourg, para os Pink Floyd, para Jean-Jacques Perrey, para Joe Meek: para uma velha ideia de futurismo. «A lua é o símbolo perfeito para a nossa música. Representa algo que tem lá estado sempre, e no futuro toda a gente quererá ir à lua». Em 1998 como em 1969, em 1969 como em 2023.

E, no entanto, os Air recusam a assumir esse lado retro, tal como muitos outros artistas recusam assumir os seus. «Há quem nos chame retro, há quem nos chame kitsch, acho apenas que não entendem», continua Dunckel. Entendendo ou não, "Moon Safari" foi um sucesso, ainda para mais quando o colaram, no que ao género diz respeito, a outras obras da eletrónica menos dançável e mais emotiva, como "Portishead" ou "Mezzanine". O trip-hop - que é em Portugal o que David Hasselhoff é na Alemanha - a tomar conta do planeta. "Moon Safari" vendeu mais de dois milhões de cópias por todo o mundo, serviu para ajudar a combater ressacas de noitadas anteriores, e deixou toda a gente em agências de publicidade a esfregar as mãos de contentes quando percebeu que 'Sexy Boy', 'All I Need' ou 'Kelly Watch The Stars' - uma das melhores sequências de sempre - ficavam mesmo, mesmo bem em anúncios de carros ou perfumes.

O que poucos sabem é que "Moon Safari" é uma obra-prima não porque soa bem - e soa - ou porque tem escelentes canções - e tem - mas sim porque é o álbum mais rock n' roll dos Air, na medida em que o rock n' roll é um espírito: «Nós gostamos de nos embebedar, gostamos de sexo, como todas as pessoas», diz Nicolas Godin em "French Connections". «O "Moon Safari" é um disco para pinar. A 'Sexy Boy' é uma canção muito porca. Gostamos de pensar que a nossa música é uma banda-sonora para o sexo», tal como muitos outros pensaram nas suas guitarras para o sexo, tal como todos os franceses pensam no sexo (isto é uma graçola mas é tão verdade, caraças). 

Tal como afirma Martin James, a diferença entre os Air e os Daft Punk é que os primeiros têm orgulho em serem franceses, mesmo que esse orgulho - e isto vai contra o que foi escrito mais acima - não parta de um nacionalismo e uma arrogância bacocas, e sim de um gosto genuíno pelas partes boas da cultura que os rodeia. Mesmo ali na capa, lê-se: french band, logo ao lado de Air. Mais ninguém faria isto, nem mesmo as velhinhas que não falam inglês. E, o que é mais curioso: os próprios franceses não os veem como franceses. «Cantávamos em inglês, por isso pensavam em nós como uma coisa mais britânica», contou Dunckel à "Loud And Quiet" em 2016. A identidade dos Air pode, assim, resumir-se a um pastiche daquilo que os estrangeiros pensam sobre França, e poderá muito bem ser essa a chave do seu sucesso: se todos os franceses fossem assim tão auto-depreciativos e capazes de troçar de si próprios, seríamos muito mais capazes de os adorar. Até, quem sabe, estaríamos dispostos a (re)aprender o francês só para comunicar com eles. Se calhar está na hora de reactivar o Duolingo, apenas e só por respeito a este álbum. Vive la Lune.

domingo, 8 de janeiro de 2023

Albrecht/d. - Endless Music (1974)

 


Dietrich Albrecht poderia ter sido só mais um bancário chato se não tivesse abandonado esse primeiro emprego, dedicando-se às artes. No plural, já que a sua obra e os seus interesses abarcam vários campos artísticos. Criou contactos com os artistas do Fluxus, esteve envolvido em mail art, mudou de nome para Albrecht/d. numa espécie de homenagem a Albrecht Dürer e, aquilo que - pessoalmente falando - mais importa, lançou uns quantos discos, colaborando com gente como Joseph Beuys (perguntem aos vossos amigos de belas-artes) e os Throbbing Gristle (perguntem aos vossos amigos drogados).

"Endless Music" talvez seja o mais conhecido desses trabalhos musicais, ainda que "conhecido" seja uma palavra muito forte para algo tão de nicho, e que ao longo da sua carreira conheceu várias encarnações e edições. Mas que não se pense em "Endless Music" como "música infinita", conforme o próprio explicou em 1988: essa é uma expressão que vai mais de encontro a um religioso nirvana do que outra coisa, inspirado pelo seu apreço pela música de Bali (não se podia ser vanguardista nos anos 60/70/80 sem se gostar de "música de Bali", que é o equivalente pretensioso do mui palonço "não podes gostar de hip-hop tuga sem gostares de Sam The Kid").

A música é sobretudo repetitiva, algo que Albrecht, antes de falecer, explicou fazer «parte da base da improvisação» (isto se o Google Translate estiver correcto). Dividido em seis peças, "Endless Music", na sua versão de 1974, soa a um encontro fortuito entre um homem das obras e um monge tibetano, o ritmo hipnótico a ceder terreno a solos de uma corda só e a ocasionais delírios vocais (feminino e operático e feminino e gritaria). E se essa descrição parecer absolutamente horrenda, é só falha do seu intérprete: "Endless Music" é na verdade bastante interessante e uma inclusão digna na lista de discos de todos os que gostam de música estranha.


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